Sobre o resguardo da intimidade
"Não seja excessivamente íntimo dos outros, porque a familiaridade excessiva gera desprezo" (Santo Tomás de Aquino)
Máximas simples que demoramos a aprender: ser transparente não é ser acessível; guardar a própria intimidade é virtude, não demérito; discrição é necessidade.⠀⠀⠀
Quem se põe como um livro aberto a todas as mãos não pode reclamar do manuseio errado, das páginas rasgadas, dos trechos riscados; do mesmo modo uma gema de valor que, entediada da gruta onde repousa, se lançasse no frenesi de alguma faixa de praia, não poderia reclamar de ser jogada pra lá e pra cá ao sabor da água, pisada, solenemente ignorada, tratada com a indiferença dispensada a todas as outras milhares de pedras daquele lugar.
Com isso não pretendo advogar um fechamento em si mesmo, uma repulsa ao outro, ou qualquer postura soberba desse tipo. Devemos estar prontos para ajudar, dispostos ao cumprimento dos deveres próprios de nosso estado ou ao qual nos obrigamos por palavra, ao sacrifício de si pelo bem do outro.
O problema é que habitualmente confundimos essa entrega a que nos constrange a virtude da caridade com aquela outra entrega, a que nos empurra o vício da vanglória.
Tomemos como exemplo a vanglória manifestada na carência. Sob os impulsos da carência não nos movemos em benefício do outro, movemo-nos em benefício próprio. Queremos ser satisfeitos.
Quantas entregas, quantos esforços, quantos sacrifícios aparentemente belos, desprendidos, puros, são apenas manifestações de um desejo desordenado de ser querido, aplaudido, desejado? Quanta vida aparentemente devotada ao bem alheio é, na verdade, vida desperdiçada em conquistar afetos para satisfação do próprio ego?
Quantos sacrifícios tolos são realizados no altar dessa vanglória! Quanta vida não é desperdiçada para satisfazer os desejos da carência!
Retirados do caminho os impulsos da vanglória, começamos a notar que o verdadeiro bem só pode realizar-se na ordem, e ordem consiste em dar a cada coisa o seu devido lugar.
Uma amizade será tanto mais capaz de promover o bem entre os amigos quanto mais eles forem capazes de, reconhecendo a dignidade um do outro, cederem e tomarem mutuamente apenas aquela intimidade própria da caridade, sem jamais reivindicarem para si territórios da vida do outros cobiçados unicamente pela carência, pela vaidade ou pela soberba.
O pudor, essa virtude tão desprezada em uma época de hiperexposição de tudo, “nasce pelo despertar da consciência do sujeito. [...] Como o pressentimento de uma dignidade espiritual própria do homem" (CIC §2554). Essa virtude, longe de ser uma “frescura”, é, em seu sentido mais profundo, um dever moral, e a única maneira de manter saudáveis os relacionamentos humanos. ⠀⠀⠀⠀
Disso depreendemos que quem se expõe demais não sabe quem é, nem o valor que tem. Provavelmente não se ama o suficiente.
Amar-se é esconder-se um pouco. Amar é não sentir-se ofendido pelo véu que cobre o amado.
Encerro lembrando que Nosso Senhor tinha uma multidão de admiradores, 72 seguidores mais próximos e um núcleo de 12 apóstolos. Dos 12, apenas três — Pedro, Tiago e João — foram escolhidos para partilhar certos momentos mais privados do Cristo — a cura da filha de Jairo, a transfiguração no Tabor e a agonia do Getsêmani –, e desses três, apenas um, João, tinha intimidade suficiente para, na última ceia, deitar a cabeça sobre o peito de Nosso Senhor. ⠀⠀⠀⠀
"Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, assim façais também vós" (Jo 13, 15)
Pudor é remédio; combate a vanglória, estreita os relacionamentos, modela o caráter, solidifica a caridade.
Boa parte de nossos problemas de relacionamento — família, trabalho, amigos, cônjuge — seriam evitados se dele fizéssemos uso com mais frequência.
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